quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Lendo: Elogio da Loucura, Erasmo

"Está escrito no primeiro capitulo do Eclesiastes: O numero de loucos é infinito. Ora, esse numero infinito compreeende todos os homens, com exceção de uns poucos, e duvido que alguma vez se tenha visto esses poucos".

"(...) Além do mais,os velhos apreciam muito a companhia das crianças, e as crianças a companhia dos velhos; pois os deuses gostam de unir os semelhantes. De fato, se excetuarmos as rugas e o numero de anos, proprios da velhice, há dois seres que se assemelhem mais que o velho e a criança? ambos tem cabelos escassos, uma boca sem dentes,um corpo raquitico;gostam de leite,gaguejam,tagarelam; a tolice, o esquecimento, a indiscriçao, tudo contribui para formar entre essas duas criaturas uma semelhança perfeita (...)".



Elogio da Loucura, Erasmo

Sozinho não dá

A menos que você seja Charles Bukowski


Morro de inveja de gente capaz de viver avulsa. Não por alguns dias ou por um algumas semanas, mas viver, simplesmente, pelo tempo que for necessário. 
Para essas pessoas – eu imagino - os namoros começam, acabam e, nos intervalos, elas são felizes de outra maneira. Ou pelo menos tranquilas. Usam o espaço entre romances para conjugar verbos alternativos: ficam, transam, flertam, ciscam, inventam, aprontam, erram. Ou apenas desfrutam delas mesmas e dos seus amigos. Parecem sossegadas, embora convivam com a solidão e com a ansiedade de arrumar parceiros - para a noite, para o fim de semana, para o réveillon que se aproxima. Diante da sugestão de que deveriam ter um namorado ou namorada, desdenham: “Está tudo bem assim”.
Como eu disse, tenho inveja, ainda que os céticos possam duvidar da felicidade de quem não tem parceiro fixo. “Quem coleciona casos está sempre sozinho”, dizem. “Parecem felizes, mas não são.” De onde vem tanta convicção? Pois eu suspeito que haja uma multidão de pessoas capazes de sobreviver por longos períodos numa dieta emocional que seja rica em sexo e novidades, ainda que tenha pouco afeto. É uma questão de temperamento, idade e formação. Talvez até de sexo. Muita gente parece gostar de confusão e variedade tanto quanto gosta de romance – ou ainda mais. E o número delas cresce.
Não é o meu caso, porém.
Como milhões de homens e mulheres, fico aflito na falta de uma relação de referência. Não consigo relaxar e improvisar. A ideia de sair à toa e arrumar alguém é mais assustadora que excitante. Ficar em casa tampouco é opção. Pode ser tolerável por uns dias, mas rapidamente se converte num inferno. Solidão apavora, como diz aquele samba lindo do Caetano. Há os amigos, graças a deus, mas eles não suprem carências essenciais. Pegar na mão, beijar na boca, dormir de conchinha e fazer planos (além de sexo relaxado, sem aquela sensação boa/ruim de primeira vez) é coisa que se faz com parceiro habitual ou fixo - que a gente, quando não tem problema com as palavras, costuma chamar de namorada.
Saber do que eu gosto e do que eu preciso não quer dizer que eu ache isso bacana 100% do tempo. Se pudesse escolher, provavelmente pegaria para mim mesmo outro temperamento. Em vez de namorador compulsivo seria, por exemplo, Desapegado 2.0. Sabe aquele cara que fica na dele por um tempão, testando sem pressa, até cansar, enjoar ou pintar a pessoa certa? Ou a garota que adora ficar sozinha na casa dela e sair com as amigas, mas não tem dificuldade em arrumar parceiros quando deseja? Então: tenho a impressão de que esse pessoal se diverte mais, embora eu não tenha muita base para comentar. A grande maioria dos meus amigos se parece comigo.
Eles ou elas se separam, declaram de boca cheia que vão ficar livres e solteiros por um bom tempo, mas, dias ou semanas depois, já estão lá de novo, publicamente enredados – com as mais variadas (e, admitamos...) singelas explicações. “Achei a mulher da minha vida”, é comum. “Nunca estive tão apaixonada”, também é frequente. Quem consegue discutir com um argumento desses? Eu não, mas fico sempre com a impressão de que tem aí uma espécie de dependência. Assim como há gente viciada em sexo, há outros viciados em amor, ou em situações assemelhadas. Essas pessoas precisam sentir-se apaixonadas para conseguir suportar o dia-a-dia. Acabam forçando a barra. Quem se apaixona assim, de uma hora para outra, e repetidamente? Sei não...
Entre os namoradores compulsivos e esses viciados em amor existe uma sensação comum: a de que sozinho ou sozinha simplesmente não dá, por inúmeras razões. Os fins de semana são muito longos, há feriados demais no Brasil, as contas dos bares e restaurantes estão absurdamente caras, viajar sozinho é melancólico, dar presente é uma delícia, receber é ainda melhor, dormir a dois no inverno é essencial... Enfim, há inúmeras razões práticas para explicar o apego das pessoas ao acasalamento, mas nenhuma é tão forte quando a sensação, intraduzível, de que a vida sozinho (ou sozinha) não faz sentido. Quem tem essa sensação acaba sendo atraído para o outro, embora até gostasse, em teoria, de tentar viver de outro jeito.
Dito isso, eu confesso que tenho alguma inveja dos aventureiros.
Eles são empreendedores do afeto: começam o dia sem nada assegurado, trabalhando e apostando que vai dar certo. Às vezes ganham, muitas vezes voltam para casa lambendo as próprias feridas. Há poesia nisso, embora possa estar soterrada por uma camada de babaquice. Um aventureiro de verdade não é um colecionador que precisa exibir conquistas ou um carente que não conseguir ficar sozinho. Ele (ou ela) gosta de seduzir e gosta de liberdade. Gosta de sexo e variedade. Encontra na diversidade o que a maioria de nós acha apenas na singularidade de um indivíduo. Mas quem é assim, ou quer viver assim, deveria saber que há um preço a pagar. No fim da noite, se nada der certo, não pode virar um chato, mendigando afeto e companhia a quem estiver do lado. É preciso ter dignidade nessa hora. É preciso ter lido Charles Bukowski.

Por Ivan Martins, revista Época 21/09/11

sexta-feira, 9 de setembro de 2011