segunda-feira, 10 de agosto de 2009

D' Maçã

"[...]Silenciou, um pouco tonta. Um cobiçoso amor pela sua própria história a tomara. Ali estava ela naquele momento de pé — rica, tonta, pesada, ganhando ali mesmo, enquanto falara, um passado de que jamais suspeitara... “Mas eu tenho ainda todo um passado para trás!”, gritou-se subitamente em arrebatamento de surpresa. Até bonita ela fora! até jovem ela fora — coisa que jamais seria no futuro. Estremeceu ao pensar que se não tivesse contado a Martim sobre o rapaz da fogueira, talvez ficasse para sempre ignorando acontecimentos seus, seus de direito. Pois só ao contar é que ela se lembrara... Como se somente agora soubesse que um rapaz e uma fogueira também eram sentimentos, e que também isso era vida sua, ah, quem sabe se a veemência se devia dar ao que se esquecera, quem sabe. A mulher então se perguntou absorta se não haveria mil outras coisas que lhe tinham acontecido... E das quais ela simplesmente ainda não sabia. Perguntou-se, com a gravidade de uma descoberta, se ela na verdade não tinha escolhido viver de alguns fatos passados, quando poderia viver de outros que tinham igualmente acontecido — e tinha direito a eles — assim como neste instante ela estava vivendo do rapaz da fo­gueira. Ali estava ela, tonta e pesada; o seu passado revelava-se tão cheio de possibilidades quanto o futuro. Oh mais que o futuro. Porque o passado tem a riqueza do que já aconteceu[..]."

A maçã no escuro , Clarice Lispector

Um comentário:

Ni Barreto disse...

Aaaaaaaaaai, nunca li!